O Casarão
- Lucianne Moreira

- 20 de jan.
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jan.

As janelas abertas me olharam quando passei. Percebi que não podia continuar a caminhar sem retribuir o olhar.
Parei do outro lado da rua entre admirada e saudosa. Admirada por aquela beleza preservada por anos. Saudosa das tantas histórias que pressenti vividas ali. Histórias das quais não participei, mas que sentia exalar das paredes, dos telhados e até do passarinho descansando no beiral.
Com certeza gerações daquele passarinho acompanharam gerações da família que viveu ali.
Fiquei hipnotizada, sem perceber o tempo passar, até que a porta da frente se abriu e uma senhora me cumprimentou sorrindo. Um daqueles cumprimentos que só existem nas varandas calmas das cidades do interior.
- Adorei sua casa - quis me justificar.
- Então, entra! Vem conhecer por dentro também.
- Não quero incomodar – respondi, caminhando em direção às escadas da entrada.
- Incômodo algum! É um prazer encontrar quem gosta daquilo que amamos.
Entramos as duas.
Olivia era o nome dela.
“Esse nome combina com a casa”, pensei.
Quando passei pela porta, atravessei a fronteira do tempo. Voltei ao passado onde eu nem havia nascido. Foi mágico, encantador, emocionante.
Percebi que os móveis antigos da sala tinham sido restaurados. Quanto capricho! Almofadas de crochê, telefone de discar e uma vitrola ainda funcionando. Tocava uma música suave, que não reconheci.
Da sala a segui até a cozinha, onde Olivia me convidou a tomar café com bolo de fubá. Coisas que a gente faz somente com quem tem intimidade. Enquanto me servia, ela ia contando casos da família. Foi um encontro de almas. A minha com a dela e de cada um que fez parte daquela casa, dos quais ela falava.
De conversa em conversa, acabamos descobrindo que tínhamos raízes em comum. Nossas trisavós (ou algo assim) eram primas. Coincidência? Claro que não. Sincronicidade cheia de profundos significados.
Ouvir Olivia, foi ouvir sobre mim. As alegrias e dores que ela me contava ressoavam em cada uma das minhas células. Memórias que eram dela, passaram também a ser minhas.
Perdi a noção do tempo e, pela janela que me atraiu, percebi o sol quase se pondo.
Num rompante a porta se abriu e duas crianças entraram correndo, chamando pela Vó Olivia. A aula havia acabado, a escola era na rua lateral.
- Tem bolo, vovó?
- Sempre, meus amores. Vão lavar as mãos e voltem aqui. Venham conhecer uma prima minha.
Ela se voltou para mim:
- Essa é minha rotina – disse, com o maior sorriso desse mundo.
Entendi o motivo da vitalidade daquela senhora, do esmero no cuidado de cada detalhe da casa, que ainda abrigava tanta alegria.
A chegada das crianças era minha deixa para partir. Pra quem queria ficar poucos minutos, acabei ficando por horas. Com pesar, me despedi, recebendo abraços apertados de Olivia e até das crianças, que mal me conheciam.
- Volte quando quiser, prima - ela me disse com um sorriso tão carinhoso que afagou meu coração. Já nos tratávamos por primas!
- Com certeza irei voltar, mas você tem que prometer retribuir a visita – disse, já sentindo o peito apertar de saudades.
Desci as escadas e foi quando senti a janela que me atraiu piscando para mim.
- Licença, dona, posso passar? – ouvi uma voz ao meu lado.
Imediatamente fui tirada do meu estado de transe. Só então percebi que ainda estava do outro lado da rua, olhando, hipnotizada, para o casarão à minha frente.
- Desculpa – respondi para a jovem, que me pediu passagem no passeio estreito – eu estava admirando esse casarão. Você sabe me dizer há quanto tempo dona Olivia vive aí?
A jovem me fitou como se minha pergunta não fizesse sentido algum.
- Esse casarão está abandonado há mais de um século, dona. Ninguém vive aí. A prefeitura mandou restaurar e faz parte do acervo histórico da cidade. Se a senhora quiser conhecer, as visitas guiadas são programadas para os finais de semana. É só agendar pelo site.
- Ninguém vive aí... – repeti como uma sonâmbula.
- É isso mesmo. Fica com Deus, dona - a jovem se afastou cantarolando.
- Vai com Ele – me despedi, ainda sem acreditar no que tinha acabado de ouvir.
Me permiti ficar ali mais alguns segundos, atrapalhando o trânsito no passeio estreito. Olhando mais atentamente, enxerguei agora outro casarão. As janelas e portas, na verdade, estavam fechadas. No beiral, nenhum passarinho. Prometi a mim mesma investigar mais a história da casa e da família que nela vivera.
Dentro de mim, a voz de Olivia ressoou, clara e nítida:
- Para quê, minha amiga? Você viu o que poucos viram e sabe mais do que imagina. Fique com as lembranças dessa tarde prazerosa que passamos juntas, prima. Não importa em que tempo. Afinal, o que é o tempo?
Sorri para ela, que agora vivia dentro de mim.
Escrito na primeira de 2024
numa pequena praça de Baependi




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