Anna e Carlos
- Lucianne Moreira
- 31 de jan.
- 7 min de leitura

Minha história começou muito antes de alguém pensar que um dia eu poderia existir. Milhares de pessoas foram envolvidas, se encontraram e se separaram até chegar o dia em que eu passei a ser eu.
É como uma arvore que vai estendendo seus ramos até onde as raízes aguentam o peso. Dessa mesma árvore, frutos produzem sementes que geram outras e outras árvores, vindas de uma única raiz.
Nossa raiz ficou no além-mar, nas terras do Alentejo.
Chegamos ao Brasil juntos com a frota D. João VI. A corte fugindo de Napoleão Bonaparte, a plebe buscando novas oportunidades. Todos desejando um recomeço, mesmo que distante, mesmo sem saber ao certo o que lhes esperava do outro lado do mundo. No navio abarrotado de gente, amizades e amores nasceram.
Era 20 de dezembro de 1807, alguns dias após a partida das várias embarcações do porto de Lisboa. Foi ali, em um dia de calmaria e céu azul, que os olhos claros de Anna se encontraram com os olhos negros de Carlos. Os dois buscavam no horizonte a esperança que nasceu no encontro desse olhar.
“Agora não estou mais sozinho.”
“Agora não estou mais sozinha.”
Foi único o pensamento que brotou simultaneamente, enquanto um sorriso tímido se esboçava levemente em ambos os lábios. Se soubessem o quanto a vida lhes reservava...
A velha se chamava Maria das Mercês, como muitas Marias que estavam por ali.
- O que estás a olhar?
- Como? - Anna se sobressaltou e rompeu o encantamento.
- O que estás a olhar garota? Vê que tua mãe a coloca de novo na cabine, ora pois, pois - ralhou D. Maria.
- Mas se nem olhar posso? Apenas o mar, madrinha.
- Ah... e desde quando o mar agora possui bigodes?
Não foi preciso continuar a conversa, pois neste instante a família inteira de Anna saiu ao convés. Era fim de dia, o momento antes do jantar onde todos se reuniam para falar sobre o passado e sobre o futuro.
Carlos se afastou, carregando a imagem de Anna na mente e no coração. Sabia que não seria bem-vindo naquela família de aristocratas, mas sentia em todas as suas entranhas que aquela história estava apenas no começo.
Anna o acompanhou com o olhar e com toda a emoção que seu corpo era capaz de aguentar. Sentia em todas as suas entranhas que aquela história estava apenas no começo.
No dia seguinte, Anna voltou ao convés, um pouco mais cedo do que no dia anterior, na esperança de ver novamente o belo jovem com o qual sonhara a noite toda. Para sua surpresa, descobriu que ele já estava lá, com os olhos fixos no alto mar. Ela se aproximou lentamente, para não despertar a atenção dele. Esforço inútil. Como a pressentir sua presença, Carlos se voltou para ela, tirando o chapéu num gesto de cumprimento.
- Boa tarde, senhorinha. Como passou de ontem?
- Boa tarde, senhor. Muito bem. Estavas a admirar o horizonte?
- Sim, um pouco preocupado. As chuvas pelas quais passamos não foram fáceis.
- Com certeza não foram. Fiquei apavorada. Aliás, apavorada com tudo.
- Tudo o quê?
Anna hesitou antes de responder:
- Não esperava que papai aceitasse essa mudança tão rápida para a Colônia. Entretanto ele, como ministro do reino, não tinha como e acho que nem queria, negar as ordens do príncipe regente. E o senhor? Posso lhe perguntar qual a sua história?
- Com certeza, bem diferente da sua. Estava ajudando a embarcar milhares de livros que estão sendo levados para o Brasil. Na confusão do embarque, aproveitei e me escondi dentro de uma das barcas deste navio. Em Portugal eu era guardador de rebanhos, mas aprendi a ler e escrever em busca de uma vida melhor, então aqui estou eu. Consegui um leito na classe dos operários em troca de cartas que escrevo. Trago escondido comigo todo o dinheiro que economizei em anos trabalhando em Portugal, mas este estou reservando para quando chegar ao Brasil. Espero que a senhorinha não me denuncie – suplicou ele
- Com certeza que não – Anna, pelos bons modos do rapaz, sinceramente não esperava por essa resposta. Imaginava que ele fosse filho de um dos amigos de seu pai. Apesar de surpresa, conseguiu seguir naturalmente com a conversa.
- Grata por ter me confidenciado toda a sua história. Confesso que estou admirada com sua coragem. Mas até agora não sei o seu nome. Eu me chamo Anna Izabel de Castro Rezende Ferraz, mas pode me tratar apenas por Anna. E o senhor?
- Para a senhorinha, apenas Carlos – disse ele num gesto ousado, segurando e beijando a mão de Anna – Agora preciso me retirar, mas espero lhe encontrar novamente por aqui amanhã e por todos os dias da nossa viagem. Sua presença aqueceu meu coração, desde ontem não parei de sorrir, nem enquanto dormia - e se retirou, deixando Anna pensativa.
“Somos muito diferentes. Minha família nunca aprovaria a nossa amizade e muito menos algo além disso. Eu fui criada para me casar com um nobre e estou a sonhar com uma vida ao lado de um rapaz pobre que mal conheço, mas que acelera meu coração sempre que o vejo. Que vida eu poderia ter ao lado de alguém como ele?”, lágrimas escorriam de seus olhos enquanto sentia seu coração se partindo, se dividindo.
Mesmo assim, no dia seguinte e por vários outros, os dois se encontraram no convés antes da hora do jantar. Anna, sendo cativada pela sagacidade e brilhantismo de Carlos, chegou a esquecer que ele era um guardador de rebanhos. Carlos, encantava-se pela beleza e inteligência de Anna, chegou a se esquecer que ela era filha de um nobre.
Um dia, Anna subiu ao convés com um lenço amarrado ao redor da cabeça e os olhos vermelhos de tanto chorar.
- Quase não venho hoje, Carlos. Estou desolada... Ficou sabendo da praga de piolhos no navio? Todas nós tivemos de raspar a cabeça – soluçou ela, apertando o lenço.
- Por mais belos que sejam, são apenas cabelos, Anna. Crescem novamente. – num impulso ele a tomou em seus braços e, quando seus olhos se encontraram, foi impossível evitar o primeiro beijo. Num susto, Anna se afastou correndo e chorando; mais pela diferença de classe social entre eles do que pela perda dos seus lindos cabelos louros.
“Como posso levar meus dias assim? Amando Carlos mas também amando a vida na qual fui criada?”
Nos dias seguintes, Anna não saiu da cabine que dividia com suas irmãs e com sua madrinha. Tinha pesadelos, perdeu o apetite e chegou a ter febre. Todos ficaram preocupados, mas o médico de bordo não encontrou nada que justificasse o estado da menina. O sentimento que brotava em seu coração era muito forte e brigava ferozmente com sua razão. Repassava mentalmente cada conversa que tivera com Carlos, o toque suave dos lábios dele nos seus. Até que, um dia, ela se encheu de coragem e voltou para o convés. Precisava de uma vez por todas decidir seu destino.
- Anna, o que aconteceu? – Carlos correu a seu encontro - Tem dias que você não aparece! Fiquei muito preocupado com você e não tinha como perguntar por notícias suas.
- Carlos... não vou mentir para você. Esses dias não foram fáceis, mas não estava doente do corpo e sim da alma e do coração. Por isso, preciso lhe perguntar sem rodeios: o que você sente por mim?
- Ahh Anna... Sinto que sem você é o meu ar, a minha vida, o meu tudo. Todos os meus planos perdem o sentido se você não fizer parte deles. Eu lhe amo, como jamais amei alguém em minha vida.
- Que planos são esses, Carlos? Não vê que somos tão diferentes? – a garota se exaltou - O melhor seria se eu não o tivesse conhecido. Melhor para você e melhor para mim também, que não consigo parar de pensar em como poderia ser a nossa vida juntos.
- Calma, Anna - Carlos segurou as mãos tremulas dela com firmeza - Se você disser que deseja vir comigo sei que conseguiremos um jeito. Tenho as minhas economias e você também pode me ensinar os idiomas que sabe, eu aprendo rápido. Quem sabe assim consigo um emprego melhor na Colônia. Com certeza teremos nossas dificuldades, seria longe da vida que você sonhou, mas lhe garanto que será uma vida repleta de aventuras e de muito amor.
- Sonhar, Carlos?! Nunca sonhei com vida alguma! Meus pais sim, sonharam uma vida para mim. Com você, pela primeira vez, eu me vi sonhando por mim mesma. Agora, mais do nunca, sei que não consigo viver sem você. Mas você entende que, para ficarmos juntos, eu terei que fugir da minha família?
- Sim, Anna. Sei que será um grande sacrifício para você. Não pretendo lhe forçar a nada, a decisão é somente sua.
Anna respirou fundo e quando soltou o ar, soltou também todos os seus medos. Sempre fora a mais corajosa de todas as suas irmãs, aprendera a cavalgar desde muito cedo e conseguia conversar qualquer assunto com os amigos de seu pai, mesmo política e religião. Sabia que muitos a consideravam atrevida demais por ser uma mulher. E, justamente por ser esta mulher, escolheu uma vida que ela iria tomar com todas as forças de que era capaz.
- Eu consigo, Carlos!! Eu consigo e quero, desde que você prometa estar sempre junto comigo.
- Prometo, minha querida. Prometo que, para sempre, estaremos lado a lado. Jamais soltarei sua mão, para nada. A partir de hoje, começaremos a traçar nosso plano de fuga.
Carlos abraçou Anna e os dois olharam para o horizonte. Olharam na mesma direção. O convés ainda estava vazio, o mar calmo e o céu azul eram seus confidentes. Dali em diante cada dia escreveriam juntos nas páginas em branco que a vida lhes traria.
Trabalho, lutas, namoro, casamento, filhos, perdas, recomeços, recomeços e recomeços. Plantando as raízes que atravessariam gerações e gerações. De Carlos e Annas.
Hoje, cerca de 210 anos depois, estou parada no porto de Lisboa. Fiz o trajeto oposto. Graças à decisão de Anna e à determinação de Carlos, hoje estou viva, carrego em mim o sangue de ambos. Mesmo sem tê-los conhecido, o coração e a alma são capazes de lembrar:
“Uma história que estava apenas no começo, no convés de um navio, em uma tarde de calmaria e céu azul”.
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