Ribanceira Abaixo
- Lucianne Moreira
- 9 de mar.
- 6 min de leitura

- Filha minha não casa com empregado de ninguém!! - Amaro bateu o punho fechado com tanta força na mesa de jantar que todos os pratos estremeceram, assim como toda a família.
Dona Quitéria respirou fundo antes de argumentar com o marido:
- Amaro, o namoro desses dois está passando do tempo considerado decente. Poço Raso toda está começando a falar. Já perdi a conta de quantos bordados fiz durante os encontros de Bernado e Maria Ercília, sentada entre os dois. Nossa filha gosta do rapaz, os dois querem ficar juntos. Ou você quer que ela fuja de casa com ele, como fez a filha do compadre Tinoco?
- Só se for por cima do meu cadáver! - Amaro não se acalmava. Fuzilou Maria Ercília com o olhar, mas a menina não baixou os olhos. Não respondia ao pai, mas estava decidida. Fora muito difícil ganhar o amor de Bernardo e não ia desistir assim tão facilmente.
Com seu porte alto e forte, cabelos pretos e lisos de descendente de indígenas, o jovem ganhava o coração de todas as moçoilas casadouras da pequena cidade. Era só Bernardo chegar trajando seu terno de linho branco que elas corriam até a janela, para vê-lo desfilar no Fordinho do patrão.
O grande amor de Bernardo, entretanto, eram os carros. Tirou sua carteira de motorista assim que completou a idade correta, mas já sabia dirigir desde os 14 anos. Logo arranjou emprego na capital, com o Coronel Aurelino, pois além de bom condutor entendia também de mecânica - conhecimento indispensável para os motoristas da época. Desde então, passava mais tempo com os carros do que com qualquer pessoa.
O jovem era ambicioso e tinha muitos sonhos. Sonhos que demandavam muito dinheiro. Assim, foi só saber da paixão da filha caçula do prefeito por ele que logo começou a lhe fazer a corte. Uma corte estratégica: além de prefeito, Amaro era o maior comerciante da região. Então o namoro começou.
- Como ficamos, Amaro? Precisamos resolver essa situação logo – insistiu Dona Quitéria - O rapaz é trabalhador, tem um bom emprego e está interessado em nossa filha. Da última vez que esteve aqui pediu para marcar um encontro com o senhor. Com certeza vai pedir a mão dela em casamento.
Amaro pensava, pensava, enquanto a família, ansiosa, aguardava uma resposta. As irmãs menores de Maria Ercília a cutucavam por debaixo da mesa. As mais velhas estavam todas casadas, assim como seus três irmãos. Ela era a bola da vez.
Finalmente Amaro se decidiu:
- Bernardo precisa ser dono do seu próprio negócio. Nada disso de ser empregado, não aceito. Ainda mais desse Coronel Aureliano, que acha que o mundo todo tem que lamber as suas botas. Marca um encontro com o rapaz. E logo. Vou fazer a ele uma proposta e vamos ver no que isso vai dar.
- Que proposta, papai? – Maria Ercília arriscou perguntar.
- Isso é entre homens. Você se preocupe em fazer o seu enxoval.
Apesar da resposta, a menina ficou animada. O sinal do pai fora bem claro: ninguém naquela família fazia enxoval se não fosse para se casar.
Dona Quitéria tratou de enviar rapidamente o recado para Bernardo. Dois dias depois, ele bateu à porta da casa de Amaro, sendo recebido pelo próprio. Sentaram-se na sala, de portas fechadas, atrás das quais as moças da casa se apertavam para ouvir a conversa.
- Muito bem, meu rapaz, vou direto ao ponto. Sei que você está interessado em minha filha, só que não aceito que ela se case com empregado de ninguém.
- Mas, Seu Amaro... – Bernardo tentou falar e foi bruscamente interrompido pelo futuro sogro.
- Nada de “mas”. Espere que eu termine de falar! Não gosto de ser interrompido.
Atrás da porta, Maria Ercília engoliu em seco. “Ai, ai...começou mal. Papai vai correr com Bernardo daqui de casa”. Mas, para sua surpresa, o pai continuou falando normalmente.
- Estou ciente de que você, além de ser bom motorista, é fascinado por carros. Está correto o meu raciocínio?
- Corretíssimo, Seu Amaro.
- Então acho que não teremos problemas. Tenho uma proposta para você: vou transformá-lo em um caminhoneiro, dono do seu próprio nariz. Vamos os dois ao Rio de Janeiro e lá escolheremos um caminhão. Estou precisando mesmo ir comprar tecidos para as minhas lojas e o levo comigo. O que pensa?
Bernardo, eufórico, achou que não encontraria palavras para responder.
- Seu Amaro, o senhor tem certeza? Um caminhão é muito caro. Vou levar anos até terminar de lhe pagar.
- Não vem ao caso, você me paga parcelado com as cargas que for transportando. O que não posso é deixar esse namoro com minha filha em banho-maria. Resolva logo ou terminamos por aqui.
- Aceito com gosto, então. E aproveito que estamos os dois aqui, para lhe pedir a mão de Maria Ercília em casamento.
- Concedido, rapaz, concedido. Acerte as contas com seu patrão e semana que vem partimos de avião para agilizar as coisas. Vá logo, agora! Há muito o que ser feito.
A festa se formou atrás da porta, com as meninas dançando e tampando a boca para que não escutassem seus gritinhos. Dona Quitéria suspirou aliviada.
Na semana seguinte, os futuros sogro e genro chegaram à capital federal. Amaro não economizou nem na compra do caminhão, nem na compra dos tecidos.
De tão animado, Bernardo ficara dias sem pregar os olhos. Pensava mais no seu novo presente e nas suas viagens Brasil afora, do que na própria noiva.
Carregaram o caminhão com os belos e numerosos tecidos. Então pegaram a longa estrada de volta, na maioria das vezes por trechos de terra muito esburacados. Amaro cochilava o tempo todo na boleia e Bernardo parecia um zumbi, com os olhos vermelhos de noites não dormidas.
Finalmente, em um belo dia de sol quente, o cansaço derrubou o rapaz.
Amaro dormia a sono alto e não percebeu o caminhão saindo da estrada. Tudo durou apenas um segundo! Bernardo cochilou e quando acordou foi tomado pelo desespero. Havia jogado o caminhão, o futuro sogro e os tecidos ribanceira abaixo, parando dentro de um rio raso de águas lamacentas.
“Jesus, Maria, José!! O que eu fiz!? Me ajudem!!” – despertou o jovem, desorientado. Bernardo não sabia o que acudia primeiro: Amaro, o veículo ou os tecidos. “Vai que o Seu Amaro morre, vão achar que o matei para ficar com o caminhão. Mas se não salvo essa carga, quem morre sou eu”. Apavorado, correu até a porta do carona e agarrou Amaro pela manga do paletó, puxando-o desajeitadamente ribanceira acima. O prefeito acordou assustado, sentiu o fundilho de suas calças todo molhado e sua cara sendo lambuzada pelo barro.
- Bernardo!! Você endoidou, rapaz?! Quer me matar? E a minha carga? Deve estar toda perdida! – gritou Amaro enquanto tentava tirar a lama do rosto e da boca.
Bernardo resolveu ficar calado. Tudo o que dissesse poderia ser usado contra ele. Exaustos pelo susto, os dois se jogaram na beira da estrada e ficaram observando o caminhão lá embaixo, sem saber o que fazer.
Passada mais de hora, um carro de boi foi se aproximando.
- Precisam de ajuda? - perguntou o boiadeiro, vendo o caminhão dentro do rio e uma oportunidade de ganhar um dinheirinho extra - Por um preço baratinho consigo uns cavalos, mais bois e, com umas cordas, podemos puxar o caminhão.
Amaro levou as mãos ao bolso do paletó para conferir se sua carteira não estava molhada. Aliviado ao sentir as notas secas, respondeu sem titubear:
- Está feito, senhor. Pode proceder como disse. Precisamos seguir viagem o mais rápido possível – e fuzilou Bernardo com um olhar tão furioso que o rapaz chegou a pensar se não teria sido melhor os dois terem se afogado.
“Meu Deus, o que será que me espera?”, pensou Bernado, apavorado.
- Bernardo, vai logo ajudar o boiadeiro, antes que eu acabe lhe enforcando - ordenou o futuro sogro – e saiba que daqui em diante nunca mais vou lhe dirigir a palavra, aconteça o que acontecer.
Finalmente, com o caminhão de volta na estrada, os dois seguiram viagem. Amaro de cara emburrada e Bernardo achando que seu casamento também tinha ido parar ribanceira abaixo. Assim foi até chegarem a Poço Raso.
Para felicidade do jovem, mesmo depois do ocorrido, ele e Maria Ercília ainda se casaram. A moça usou de todas as chantagens possíveis e imagináveis para evitar que o pai impedisse a união deles.
Os tecidos, lavados inúmeras vezes por Dona Quitéria e suas filhas, não recuperaram a cor original, ficando com um tom amarelado.
Amaro, rancoroso, fez correr a notícia de que ficaria inimigo de qualquer convidado que ousasse comprar tecido para as roupas do casório em outra cidade.
Nada escapou da cor amarelada: nem o vestido e véu da noiva, nem os vestidos das madrinhas, ou de Dona Quitéria e de suas filhas. Os ternos e as camisas dos homens também exibiam a cor resultante da trágica viagem entre sogro e genro.
Gerações e gerações vindouras ainda contam esse “causo” e todos os descendentes de Bernardo e Maria Ercília detestam amarelo.
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